Perfeitos Defeitos
Todos nós procuramos o ser perfeito, no âmago do que só nossa mente cria para satisfazer nossas expectativas e desejos... Mesmo sabendo que não existe. Porém, quando a realidade bate a nossa porta em certos momentos, é notória esta clara subjetividade: o que alguns chamam defeitos, são para outros, as mais compatíveis qualidades.
Perfeitos Defeitos
"Eu não acredito que ele está aqui!"
Perfeitos Defeitos
"Eu não acredito que ele está aqui!"
Pensou consigo Lorena, assim que avistou o ex-marido, sentado em uma mesa próxima à janela, em um restaurante chique da zona sul. Estava ao lado de Thiago, o jovem promotor de vendas com quem estava tendo seu primeiro encontro após meses. Foi ela quem escolheu o local, por ser rusticamente requintado e ter boa música.
Procurou uma mesa oposta, do outro lado da porta, de forma a manter um discreto contato visual, sem que o ex percebesse. "Acho que ele não me viu", pensou novamente, enquanto o maître os encaminhava até o setor.
"O que ela está fazendo aqui?"
Indagou-se mentalmente Júlio, ao avistar a ex-esposa, entrando pela porta do De La Bordignon. "Seis anos casados, e a gente nunca veio aqui... E olha só! Justo hoje!", continuou em sua torrente de pensamentos. Vanessa, sua acompanhante, perguntou algo. Assentindo com a cabeça, tomou um gole de vinho.
Lorena beirava os quarenta, e era professora de português. Era uma mulher bonita: tinha os olhos castanhos claros, cabelos ondulados castanhos com mechas douradas e corpo esbelto. Uma mulher, dizia-se, cujos anos não faziam efeito: ainda parecia ter seus vinte e cinco. Ou mesmo dezesseis, quando ostentava em seu armário pôsteres do Axl Rose, George Michael e Boy George. E por tal atributo, era a paixão platônica de alguns de seus alunos do colégio. Era uma pessoa meiga e atenciosa, mas muito indecisa.
Júlio era um ano mais velho, e também era tido como um quarentão elegante: cabelos castanhos claros, com os grisalhos laterais; olhos escuros e a voz clara e rouca. Tinha um corpo musculoso, lapidado por anos em academias de ginástica, apesar da barriga levemente saliente que adquiriu nos últimos anos. "Quem não tem barriga, não tem história", esta era sua justificativa aos amigos. Tinha uma corretora de seguros, e era um rapaz engraçado e inteligente, apesar da personalidade forte.
"Bom, acho que não me viu", pensou de novo Júlio. "E se me viu, obviamente fingiu que não. Que seja assim. Como sempre foi". Júlio sentiu uma ponta de desgosto. Olhou para Vanessa, em seu deslumbrante vestido preto, e perguntou:
- Já escolheu? O salmão é ótimo.
"Bom, algum dia tinha que acontecer. Estava demorando... Se ele percebeu que eu entrei e não os cumprimentei, eu serei a errada, conforme a etiqueta nestas ocasiões. Acho que vou dizer um oi, se tiver que passar por lá, indo para o banheiro... Ou melhor, não... Mas..." Suas conjecturas foram interrompidas por Thiago, perguntando o que gostaria de beber.
- Gostaria de uma Gin Tônica, com gim extra e duas fatias de limão - disse ao garçom.
Júlio e Lorena foram casados por seis anos. Ambos eram de boas famílias, e tiveram uma excelente educação particular, elevando à um novo nível a rincha PUC x Mackenzie. Conheceram-se em uma festa de um amigo em comum. Em três meses estavam namorando, e em quatro anos de namoro, casaram-se. Tinham uma vida confortável, moravam em uma boa casa, e sempre viajavam. Amavam-se, notoriamente. Todos os que conviviam com eles, não diziam o contrário. E todos diziam que seria um lindo casamento normal - apesar do que seja considerado um casamento normal hoje em dia.
Porém, no sexto ano de casamento, decidiram se divorciar. Foi uma surpresa para todos.
Se perguntassem a ela o motivo, Lorena diria:
- Ele é um ogro! Sempre aumenta o tom de voz. Fala palavrão. Eu não aguentava mais!
Se perguntassem a ele, seria:
- Ela não sabe o que quer... É muito indecisa! Qualquer escolha vira uma novela, eu que tenho que pensar em tudo... Era muito mimimi pra mim.
Ninguém acreditava que isso seria um motivo plausível para o fim de um casamento tão sólido de anos, mas... Já vimos o fim de relacionamentos por menos, e hoje são cada vez mais comuns rompimentos por causa de toalhas molhadas em cima da cama ou pela demora ao se responder o Whatsapp.
Assim, por comum acordo, separaram-se. Cada um para um lado, sem maiores hostilidades de nenhuma parte. Já estavam há oito meses divorciados, e não se falavam mais, a não ser por algumas ligações suspeitas de um número privado, que quando Lorena atendia, a pessoa desligava.
E por esta noite de sexta; a primeira que se esbarravam.
- Acho que vou pedir o camarão, e você? - Perguntou Thiago.
- Eu vou querer o salmão... Não... É sim, o salmão! - disse Lorena, meio desdenhosa, focando traçar o caminho que faria se tivesse que ir ao banheiro, de forma a não esbarrar na mesa do ex. Decidiu que não queria contato. Seria uma noite maravilhosa, e Thiago era um lindo rapaz, que conheceu pelo Facebook. Não seria o ex que estragaria a noite. Aquele ogro!
Escolheu sair com Thiago, após muita insistência por parte do rapaz, por ele ser extremamente educado e controlado. O contrário de Júlio.
- Posso te servir mais vinho? Este aí já está fazendo aniversário no copo, Jú! Você está bem? - perguntou Vanessa, a linda loira no vestido preto, portadora de medidas perfeitas e dez anos mais nova que Júlio.
- Estou sim, é que tive um dia difícil na empresa, mas... Já passou, e nós vamos curtir o fim de semana! Que tal o robalo? - perguntou Júlio, um pouco impaciente pela demora de Vanessa ao escolher o prato. Na verdade, estava pensando no que diria à Lorena caso ela passasse por sua mesa para ir ao banheiro. Que tal um "estou ótimo, e você?" Talvez soasse meio provocativo, caso ela interpretasse isso como uma alusão à Vanessa, no alto de seus quase um metro e noventa de altura. Ou não. Afinal, ela também estava com um rapaz bem mais novo e bonito. E também parecia ótima. Aquela tonta!
Estava saindo com Vanessa há cerca de quatro semanas; foram apresentados por um amigo da academia. Apreciava seu senso de humor e sua proatividade. O contrário de Lorena.
Quando chegou o prato, Júlio se surpreendeu. Vanessa tinha pedido um combinado com vitela, para dois, enquanto ele estava no celular em meio a um de seus devaneios. Júlio não gostava de vitela. Mesmo assim, começou a comer, enquanto Vanessa falava de sua família.
Logo após chegou o prato na mesa de Lorena, acompanhado de um longo cabelo crespo. Lorena chamou o garçom, e educadamente pediu para que o prato fosse trocado. O garçom - que queria ser mandado embora, diga-se de passagem, devido ao tratamento que recebia no local; mas isto fica pra outra história - recusou-se, e chamou-a de madame fresca. Tirou o cabelo com a mão, e os dois começaram a discutir. Thiago, até então mero coadjuvante na cena, sugeriu a Lorena para retirarem-se do local, que estava um barraco, e ele não queria confusão.
Lorena não acreditou no que ouviu. Acabara de ser humilhada por um garçonzinho de quinta, em um local chique, no meio de todo mundo. E iriam só sair dali! "Ah, se fosse o Júlio, meteria a mão no olho deste merda imprestável, e ainda ganharíamos uma indenização do restaurante".
Enquanto isso, Júlio acompanhava a cena, sem escutar a evidente discussão devido à música. Prestava atenção e queria ir lá ver o que estava acontecendo. Porém, foi interrompido com um chamado de Vanessa, que em meio à sua complacência perante a cena da ex, perguntou se estava bom na semana que vem irem à casa de seus pais, a fim de oficializarem o namoro. Quando voltou seu olhar à mesa, percebeu que Vanessa tinha pedido suco de melancia para ele. Júlio odiava melancia. "Se fosse a Lorena, pelo menos, conversaríamos antes o que pedir. Antes de NAMORAR, meu Deus! Ah, e que droga é essa de vitela?"
E a seguir, tudo aconteceu muito rápido.
Vanessa saiu em disparada na direção do banheiro, com os olhos lacrimejando. Passando perto da mesa de Júlio, cumprimentou-o através de um aceno, com a mão direita em sua têmpora, tentando esconder as lágrimas.
Júlio levantou-se, e sem falar nada à Vanessa, foi até a mesa em que estava Lorena, metendo um murro no olho do garçom. Depois, foi até o banheiro, onde Lorena estava encostada na porta.
- O que aconteceu, Lorena?
- Aquele garçom me humilhou, e o maldito não fez nada...
- Como assim... O que...
- Deixa pra lá... Vamos sair daqui.
Entrou no banheiro feminino, e Júlio foi atrás. Pularam a janela, e saíram sem pagar. Na rua, avistaram um ponto de táxi, onde o motorista de um Fox dormia no banco.
- Acha que devemos ir de táxi? Podemos ir com seu carro, ou mesmo de... - argumentou Lorena, sempre indecisa.
Olhou para ela, e beijou-a. Enquanto batida frenético no vidro do táxi, acordando o motorista aos gritos. Sempre bravo.
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